A ocupação da Alemanha
em junho de 1945 levou o professor Victor
Klemperer a viver uma situação que lhe pareceu
insólita. Aos 60 anos, depois de sofrer todo
tipo de privação, humilhação e ameaça de
morte, ele e sua mulher Eva foram obrigados a
provar que ele e sua mulher haviam sido vítimas
do fascismo para recuperar seus direitos civis.
Os burocratas alegaram que o casal não era
ativista político e não havia sido confinado em
campo de concentração. Apesar da reputação
internacional como intelectual, Klemperer levou
dois anos para ser reintegrado à Universidade
Técnica de Dresden, de que era titular desde
1920 e da qual fora demitido pelos nazistas em
1935. Os alemães, no entanto, precisariam
esperar 35 anos depois de sua morte, em 1960,
para ter acesso à importante contribuição do
professor contra o nazismo, seus diários
secretos.
Escritos entre 1933
(quando Hitler se tornou chanceler) até julho de
1945, Os Diários de Victor Klemperer
começaram a ser editados em 1995 e foram
reunidos em cinco volumes que totalizaram
aproximadamente cinco mil páginas. Em 1997, o
documento ganhou uma versão condensada
internacional, de quase 900, a mesma que está
saindo no Brasil este mês. A extensão da obra
não impediu que Klemperer se transformasse
imediatamente num best-seller em seu país. Não
por acaso. Trata-se do mais importante registro
sobre a ascensão e a queda do regime
Nacional-Socialista de Hitler feito por quem
estava no olho do furacão e, pior, cercado por
aqueles que queriam tirar sua vida. Intelectual e
profundo conhecedor da história cultural e
política alemã, o professor não fez simples
anotações cotidianas, mas crônicas acabadas do
período mais importante deste século. Suas
memórias combinam seu drama pessoal com o
crescente anti-semitismo difundido pelos
nacional-socialistas. As minunciosas
observações dos primeiros anos revelam seu
isolamento crescente como judeu. Inicialmente,
foi hostilizado e privado de direitos. Demitido
do cargo de professor, perdeu parte da
aposentadoria.
Seu dramático relato
deixa claro que, ao invés de uma sedução
ideológica, o comando nazista usou formas
violentas para forçar parte da população a se
engajar em seu projeto político, por meio da
opressão, da chantagem, da delação e da
censura à imprensa. Klemperer observou sobre o
começo do goverrno de Hitler: Uma sensação de
medo como a que deve ter dominado a França sob
os jacobinos. Ainda não temo pela vida, só pela
liberdade.". Em seguida, ele foi
profético ao dizer que predominava "a
sensação de que este regime de terror não pode
durar muito, mas de que, quando ele cair vai nos
enterrar a todos.
Klemperer era um
especialista em literatura, principalmente
francesa. Nos primeiros anos de confinamento,
para fugir às suas frustrações e ao confisco
de suas liberdades individuais, passou a se
dedicar em tempo integral a escrever o
projeto literário de sua vida: contar em vários
volumes a história do século 18. Com a
proibição de freqüentar bibliotecas públicas,
mergulhou na arriscada construção de seus
diários como forma de se manter vivo. Os fatos
demonstrariam que ele era um observador lúcido
diante de uma nação delirante. Os relatos
mostram como, desde o começo, o programa
anti-semita de Hitler fazia com que ninguém mais
ousasse escrever cartas ou dar telefonemas. Nesse
momento, as preocupações de Klemperer estavam
entre a construção de sua casa e o desenrolar
de fatos políticos. Nesse instante, a ira
nazista contra judeus e comunistas aparecia em
bandeiras hasteadas, casas confiscadas e
fuzilamentos. Os advogados judeus foram proibidos
de aparecer no tribunal, juízes judeus,
dispensados e lojas judaicas, boicotadas. A cada
ano, Klemperer foi sendo cercado até se tornar
prisioneiro político. Cansado e menos exigente
quanto as privações a que fora submetido, ele
alimentou por algum tempo a esperança no
fracasso de Hitler e na instalação do estado de
direito. E não perdeu o tom da indignação,
apesar do risco que corria ao anotar sua rotina e
idéias. Sua situação foi ficando cada vez mais
desesperadora com o avanço da guerra. Em 1941,
perdeu a casa e passou a conviver com a
proximidade dos extermínios nos campos de
concentração. Foram momentos de depressão
profunda, com as condições física e
psicológica da esposa cada vez piores. A
opressão também começou a destruir suas
amizades, graças à paranóia da delação e por
causa da comodidade permitida a quem jurou
obediência ao Führer.
Klemperer deixa claro que
o fato de Eva ser ariana e não judia foi
fundamental para a sobrevivência do casal.
Suas impressões sobre os judeus, então, eram
desalentadoras. Para mim, o mais repugnante
é o específico pessimismo judeu, com sua
agradável serenidade. Mentalidade de gueto,
recém desperta. Pisam em nós, é assim e
pronto. Basta que consigamos fazer nossos
negócios e que não aconteça nenhum pogrom.
Melhor Hitler que coisa pior! Klemperer, em
nenhum momento, submergiu à passividade. Além
da intensa e solitária produção de
monografias, entre 1935 e 1938, ele tentou por
todos os meios imagináveis fugir da Alemanha.
Enviou a lista de suas publicações e
apelos de S.O.S. para vários
países, Japão, Austrália e Peru, e recorreu a
contatos em Jerusalém. Nada conseguiu. Até
1939, nutria a esperança de um fim próximo para
Hitler: "Estou convencido de que o
nacional-socialismo entra em colapso no ano
vindouro. Talvez tenhamos de sucumbir com ele,
mas ele com certeza vai terminar, e com ele, de
um jeito ou de outro, o terror.
O colapso da França no
ano seguinte, porém, liquida o otimismo de
Klemperer. Em 1942, ele observou, desolado:
"Todos com quem estivemos juntos na última
noite de São Silvestre desapareceram, por
assassinato, suicídio ou evacuações. O
discurso otimista o abandona: "Este ano foi
o pior dos dez anos de nacional-socialismo:
sofremos sempre novas humilhações,
perseguições, maus-tratos, violações; a
matança nos atingiu bem de perto e todos os dias
nos sentimos em perigo de vida. Existe a
probabilidade de que o terror
aumente". Klemperer viveu mais quinze anos
após o fim da guerra. Teve tempo suficiente para
ver muitos de seus opressores sob julgamento, num
regime democrático, como queria.
Fonte: Os Diários de
Victor Klemperer
tradução de Irene Aron
Enviado por Leon M. Mayer
Presidente da Loja Albert Einstein da B'nai
B'rith do RJ