Braz Chediak
VIDA DE CACHORRO |
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Quando morreu, ao chegar ao céu dos
cachorros, o vira-latas Lulu - que todos chamavam de Lu - protestou:
- Ora, isso não tá certo. Deus puxa a brasa pra sardinha dos homens. A
vida deles é muito melhor...
São Pedro que, como todo bom porteiro, é atencioso, tentou explicar, mas o
vira-latas mostrou-se irredutível. O bom velhinho então, consultando seu
computador, viu que estava havendo um parto na terra, numa cidadezinha
chamada Três Corações, e propôs ao implicante que voltasse para nosso
mundo como gente e, assim, quando morresse poderia vir para o céu dos
humanos. O vira-latas aceitou.
***
Lúcio da Silva - que todos chamavam de Lu
- nasceu às 4,30 da tarde, no fim da Cotia e, nem bem abriu os olhos, foi
dependurado de cabeça pra baixo e levou um tremendo tapa na bunda. Quis
latir, protestando, mas o que conseguiu foi soltar um berro esquisito,
semelhante a um instrumento desafinado: “Uuaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhh....”
Em seguida enfiaram-lhe numa bacia e, enquanto ele se esgoelava aflito, a
família toda se aproximou falando coisas incompreensíveis: “É a cara do
pai..”, “É a cara da mãe...” e uma tal de Tia começou a passar os dedos em
seus lábios, dizendo: “Bilú, bilú, bilú, ne-néééémmm...” E, por mais que
ele gritasse protestando, não o deixavam em paz.
“Isso é só no começo”, ele pensou, “depois melhora”.
Mas não melhorou. No dia seguinte um homem a quem chamavam Pediatra,
acendeu-lhe uma lanterninha na boca, arregalou-lhe os olhos, mexeu em seus
ouvidos, enfiou-lhe goela abaixo um líquido horroroso...
Pouco tempo depois começou a andar como estava acostumado: nas quatro
patas. Mas, não sabia por que, chamavam aquilo de engatinhar. Quis
protestar, sempre fora inimigo dos gatos, não aceitaria aquela ofensa, mas
conseguiu apenas balbuciar um hhhaaaannn!!!!, que fez a tal Tia dar um
grito:
- Ele tá começando a falar. Meu Deus, que gracinha...
E foi um corre-corre. A desgraçada pegando-o no colo, jogando-o para cima:
“Fala titi...titi... titi-a-a-a-a-a-a!!!
Mas não era só isso: a mãe o obrigava a comer uma papa horrível enquanto
suspendia a colher e dizia: “hhhhoooonnnnnn... olha o aviãozinho, olha o
aviãozinho”. E tome comida, tome vacinas, e não pode andar descalço, e sai
da chuva, e sai do sol , não sobe na janela, não se esconda embaixo da
mesa, e já pra casa, cê ainda é criança pra brincar na rua...
***
Quando cresceu arrumou emprego num banco.
Ficava o dia inteiro contando dinheiro - muito dinheiro - e no fim do mês
recebia uma mixaria que não dava nem pra pagar as contas. Sim, pois os
humanos viviam cheios de contas para pagar. Era aluguel, prestação, luz,
gás, telefone, impostos, padaria, açougue e etc. e etc., etc., etc.......
Um ano depois casou-se, alugou casa no Peró e... as contas aumentaram. E a
mulher, que antes era tão compreensiva, começou a tratá-lo da mesma
maneira que sua mãe o tratava quando criança:
- Não suja o chão! Vai comprar leite, varre o quintal, vê se o feijão tá
queimando...Cê não acha que tá muito marmanjo pra ficar na rua?????
***
Lu teve filhos, enfrentou desemprego,
brigou e desbrigou com a mulher que vivia lhe martelando os ouvidos:
- Toma conta das crianças. Tem que pagar o açougue, tem que consertar o
fogão, a privada tá quebrada, a pia tá pingando....
E os filhos cresceram, e se casaram, e diziam: “Toma conta dos seus netos,
nós vamos sair...” E a mulher: “Sai da rua, cê tá muito velho pra ficar no
sereno...” E os netos: “olha o cabelo dele que belezinha, tá branquinho...
bilú, bilú, bilú... vovôôôôô......”
“Meu Deus - ele pensou, vendo um cachorro virando uma lata de lixo na
calçada em frente - será que os animais passam por tanta amolação???”
E, atravessando a rua para espantar o cãozinho, sentiu um pontada, uma dor
aguda no peito e... morreu.
Quando chegou ao céu, foi conduzido ao tal paraíso dos humanos, cheio de
anjos, de homens, de mulheres, de adolescentes, de crianças... Mas Lu
começou a tremer, sentiu pavor, segurou na barba de São Pedro e protestou
gritando:
- Nada disso. Aí, não, pelo amor de Deus. Nada de gente perto de mim.
Quero ir pro céu dos cachorros. Lá pelo menos tem postes, muitos postes,
onde vou poder erguer minha perna e mijar. Mijar a vontade. Quero mijar
pra essa tal de humanidade!!!!
(12 de fevereiro/2005)
CooJornal
no 407