26/02/2005
Número - 409
- É tão sublime o amor
- Leila Diniz
- Vida de cachorro
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Braz Chediak
O JURAMENTO DE HIPÓCRATES |
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Cada dia procurava um médico e todos a atendiam com a mesma cortesia. No
consultório do cardiologista, por exemplo, apresentava sintomas cardíacos:
- Não agüento mais essa queimação no peito, essa pontada...
E o médico, com paciência de Jó, a examinava e sabendo de sua neurose, de
sua necessidade de doença, dizia:
- O caso é sério!
E ela, com um sorriso nos lábios, com uma alegria súbita, indagava:
- É grave, doutor?
- Gravíssimo!, respondia o doutor, indo até à pia onde enchia um copo d’água,
com um pouco de açúcar, e entregava à mulher:
- Beba isto. E cuidado. O caso não é para brincadeira!
Ela saía embevecida, elogiando:
- Nunca vi um doutor como este. Nunca vi.
Dia seguinte procurava outro. Chegava ao consultório do
gastroenterologista, gemendo:
- Estou com dor aqui, aqui e aqui...
O médico a mandava deitar-se, apalpava-a e dizia:
- O problema é seriíssimo! Seriíssimo!
E novamente ela abria o sorriso, tomava o remédio que o médico lhe dava e
saía feliz.
- Isso é que é médico! Isso é que é médico!
E todos a conheciam e atendiam, de graça com a mesma paciência.
Os médicos dos Postos de Saúde a recebiam diariamente. E até o pediatra, quando a encontrava, mesmo na rua, tirava do bolso uma colher e
uma lanterninha e ia dizendo:
- Põe a língua pra fora. Fala AAAAAAAHHHHHHH!!!!!!!
Entrava nas farmácias e drogarias como um santo entra num templo ou um
jogador no Maracanã. Aquelas prateleiras, aqueles remédios todos eram o
paraíso. Mal via os balconistas, perguntava ansiosa:
- Alguma novidade?
E eles, tomando-lhe o pulso:
- Chega amanhã um produto novo. Mas, meu Deus, como a senhora está
pálida....
E ela saía dali felicíssima:
- Bom menino este farmacêutico. Tão atencioso...
. . .
Um dia, surgiu na cidade um médico novo. Jovem bem falante, trazendo em
sua bagagem a sabedoria dos recém-formados, começou logo a montar seu
consultório na Rua Direita.
Em contado com os colegas já estabelecidos, tomou conhecimento dos
assuntos (e das moléstias) de Três Corações e foi informado por todos da
existência e da mania de Dona Milica. Escutou tudo e, entre dentes,
murmurou:
- Essa não!
Pronto o consultório, colocou anúncio nos jornais e na rádio: estaria
atendendo os clientes “amanhã, a partir das 9 horas...”.
Dona Milica, não contendo a ansiedade, veio a pé do Fim Cotia e foi a
primeira a chegar. E com o coração saltitante foi atendida pelo jovem
médico.
A bem da verdade, ele a examinou com o cuidado do iniciante. Dos pés à
cabeça. Só pulou “as partes” porque ela, ali, não deixava homem nenhum pôr
as mãos.
Quarenta minutos cravados de exame. Depois mandou que ela se assentasse e
fez algumas anotações. Dona Milica não agüentava mais esperar o veredicto,
esperançosa de alguma doença moderna, um nome estranho, etc. Seria acertar
na loteria.
Mas o jovem médico levantou a cabeça e disparou:
- A senhora não tem nada. Tem saúde pra dar e vender!
Foi como uma punhalada. Ela ainda arriscou um “mas...”, mas o jovem médico
a interrompeu:
- Uma saúde de ferro!
E ela, então, sentiu o sangue subir. Sentiu que o corpo esquentava. Sentiu
a tristeza, o abandono, a decepção. Num esforço, tentou levantar-se mas
viu que tudo fugia. E seus olhos pararam.
Enquanto o jovem médico, lavando as mãos, resmungava entre dentes:
- Comigo não. Eu fiz o juramento de Hipócrates!
Sem perceber que Dona Milica estava morta.
(26 de fevereiro/2005)
CooJornal
no 409
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br
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