12/03/2005
Número - 411
- Crônica e ponto final
- É tão sublime o amor
- Juramento de Hipócrates
- Leila Diniz
- Vida de cachorro
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Braz Chediak
UMA VELHA AGENDA |
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Limpando meus livros descubro, escondida num canto da estante, uma velha
agenda dos tempos em que comprei meu sítio. Abro-a ao acaso e leio algumas
anotações: Arrumar a cerca, capinar o pomar, adubar os pés de laranja
lima... e imediatamente me veio à memória aquela época.
Lembrei-me do dia em que comprei diversas mudas de laranja lima, num
caminhão estacionado em Santa Teresa e do vendedor que me sorria com tanta
simpatia.
Com uma alegria danada, plantei-as, as vi crescer, florescer e dar os
primeiros frutos, sonhando em chupar aquelas laranjas docinhas, docinhas.
E um dia, voltando de uma viagem ao Rio e vendo que diversas estavam
maduras, apanhei uma, a mais amarelinha, e, com a boca cheia d’água,
descasquei-a com cuidado. Mas.... era uma laranja azeda, ácida, que nada
tinha de laranja lima. Há princípio fiquei na dúvida: será que havia
comprado alguma muda de outra qualidade? E experimentei outra de outro pé,
e de outro, e de outro... e todas eram azedas, piores que limão.
Imediatamente pensei naquele vendedor malandro, que havia me passado a
perna. O danado não me sorrira coisa nenhuma, ele rira de mim, isto sim.
Senti uma raiva desgraçada, mas me veio a pergunta: será que este golpe,
este pequeno golpe, fez dele uma pessoa melhor? Certamente não. Certamente
ele continua como sempre foi, um pobre homem que precisa mentir para
sobreviver. Ou talvez, quem sabe, tenha se enriquecido e hoje, entre uma
cerveja e outra, conte aos amigos que um dia, em Três Corações, deu um
“grande golpe num barbudo meio ranzinza chamado Braz...”.
Não vou pedir a Deus que o mande para o inferno, quando ele morrer. Mas
que o mande para o purgatório por um bom tempo e que tenha de chupar todos
os dias, enquanto estiver lá, umas 2 ou 3 dúzias de laranjas daqueles pés
que me vendeu. Acho que é uma pena justa.
Em outra página, com a caneta já falhando, leio esta anotação: Procurar
arapucas.
Não, eu não gosto de caçar passarinhos, gosto deles livres, como devem ser
livres também os homens, e explico a causa da anotação: trabalhava comigo
um casal que tinha dois filhos que viviam fazendo gaiolas de bambu que
enchiam com canarinhos, tico-ticos, coleirinhas, etc., etc. Fui até a casa
deles e disse, muito sem jeito, que eu não queria nenhum passarinho preso
e, muito menos, que fossem mortos.
O homem coçou a barbicha, ouviu, ouviu, concordou.... mas as crianças
continuaram caçando.
Um dia eu os observei, de longe, e descobri onde armavam sua arapuca. Fui
até lá e a destruí. Não adiantou, fizeram outra. Destruí-a novamente.
Fizeram outra. Foi aí que comecei a pensar e me lembrei que o pessoal da
roça é muito supersticioso, têm muito medo.
Aproveitando uma ida à cidade, comprei numa casa de macumba um pequeno
diabo vermelho, olhos arregalados, cara feia, rabo com fisga na ponta.
De volta, coloquei o diabinho debaixo da armadilha, desarmei-a e fiquei
escondido, esperando.
Pouco depois os meninos chegaram. Viram a arapuca desarmada, correram
alegres, meteram a mão e...... quando viram o diabo saíram gritando
apavorados. Gritaram tanto que o pai e a mãe correram para ver o que era.
E também saíram correndo, aos gritos:
- Credo em cruz, ave Maria!!!!!!!!!!!!!!!
No mesmo dia o homem arrumou suas coisas e se mudou. Meu sítio tomou fama
de ser mal assombrado, lugar onde o diabo aparecia, e que eu tinha parte
com o demônio. Foi um custo para arrumar outra família para trabalhar lá.
Hoje, o sítio e as arapucas são anotações escritas numa agenda abandonada.
Mas, como o retrato na parede do Drummond.... “Como dói!”
(12 de março/2005)
CooJornal
no 411
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@bol.com.br
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