
22/04/2006
Ano 9 -
Número 473
ARQUIVO
BRAZ CHEDIAK |
Braz Chediak
PAZ, SUBSTANTIVO FEMININO |
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Sentado em minha varanda,
ouvindo o velho Nat King Cole, termino de ler a boa e lúcida crônica
“CORAGEM, IRMÃO!”, da professora Vanja Ferreira, e, refletindo sobre a
associação entre o medo e o ódio (ódio que muitas vezes se disfarça em
coragem) vejo uma pequena corruíra voar para a beira do rio e se espojar
na terra. Ela ainda é jovem, está mudando as penas e se exibe ao macho
que a observa num galho de amoreira, cheia de orgulho da juventude e da
exibição. Em segundos, revejo sua vida, o momento em que nasceu, em um
pequeno buraco no muro de minha casa, os aflitos chamados pela mãe
pedindo alimento, a primeira vez em que colocou a cabeça para fora do
ninho, olhando tudo com curiosidade e deslumbramento, seu primeiro vôo e
a conquista do grande espaço que é o mundo.
Agora, sem me perceber, cumpre seu ritual: passeia na frente do futuro
parceiro, trocam alguns sons que não entendo, fazem gestos talvez de
carinho, alçam vôo e somem em busca de outro lugar. Não há despedidas da
velha casa e do velho cronista. Há apenas o vôo em direção à renovação,
em direção à vida.
Deixo de lado o jornal ao mesmo tempo em que uma jovem passa, ereta,
também orgulhosa de ser jovem e de sua beleza altiva, segurando na mão
de sua pequena filha. Penso na observação de João Cabral de Mello Neto –
ou será de Murilo Mendes? – sobre a beleza da mulher em movimento. A
jovem, caminhando com a criança, ciente de seu corpo, dos músculos bem
modelados que se movem como elásticos, é como a imagem do poeta.
Novamente volto no tempo e me recordo de quando ela era criança, como
hoje é a filha, entrando em meu bar (o finado Bar do Braz, de tantas
memórias), exibindo feliz seu tênis novo e me pedindo “balinha”.
Recordo-me de quando, também no bar, a vi já adolescente, usando o
primeiro batom e sentindo o prazer da liberdade de sair sem os pais,
apenas em companhia dos amigos e tomar uma delicada taça de vinho. Ela
também cumpriu seu ritual e agora, passeando com a pequena filha, ajuda
a escrever a história da cidade, e do mundo.
Sir James Jeans diz que “Na realidade mais profunda, além do espaço e do
tempo, talvez sejamos, todos, membros de um só corpo.” Este pensamento e
a visão dos pássaros, da mulher e da criança, me entristece porque
percebo que mesmo sendo parte deste grande OM, às vezes sentimos medo –
medo, anagrama de demo -, e ele nos traz pensamentos obscuros, rancores
e, pior ainda, atos e palavras vis. Quantas vezes agredimos a nós mesmo
de maneira cruel e absurda! Quantas vezes devastamos uma floresta com
indiferença e dirigimos nosso amor a um pequeno e artificial jardim!
Quantas vezes matamos, dentro de nós, lembranças de pessoas que nos são
queridas sem percebermos que seus lugares jamais serão preenchidos, que
ficará em nossa alma – ou em nossa mente – um grande vazio!
Há uma frase ZEN que diz que “a solidão do samurai só é comparada à do
tigre no deserto, às vezes”. E é esta solidão que estamos vivendo porque
nos esquecemos das mais belas palavras pronunciadas por um homem que nos
compreendeu e nos viu com plenitude: “AMAI-VOS UNS AOS OUTROS”.
Fico triste, eu dizia, mas releio a crônica da Professora Vanja e o
pensamento, a visão dos pássaros, da mulher e da criança me alegra
novamente porque percebo que a coragem existe e é possível. É com
coragem que estamos todos, como diz May, “na luta do que não tem
sentido, para obrigá-lo a significar. Na luta contra o silêncio, para
que responda. Na luta contra o não-ser, para que seja.” E quando tudo
for compreendido sem necessitarmos de explicações ou justificativas, não
haverá medos e nos alegraremos com a viagem, a delicada viagem que
estamos empreendendo e nos levará de retorno ao ponto de partida, ao
estado puro, como estava a terra no momento da criação. Talvez neste dia
alçaremos vôo, como a pequena corruíra, ou como a jovem que passa, e
conquistaremos o espaço da verdade e da coragem dois substantivos
femininos. Substantivos e femininos, como a paz.
(22 de abril/2006)
CooJornal
no 473
Braz Chediak,
cineasta e escritor
Três Corações, MG
brazchediak@gmail.com
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