
16/01/2020
Ano 23 - Número 1.206


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CAROL CAMPOS

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Carol Campos
FRANCAMENTE
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- Você é tão infantil. Acha mesmo que dizer que se lamenta conserta alguma
coisa? - Aonde você vai? Onde devo ir? O que devo fazer? -
Francamente, minha querida, eu não dou a mínima...
E foi assim, bem
assim, que eu vi a porta se fechar. Lá fora, um calor semidesértico. Talvez eu
tenha inserido por conta própria o diálogo maravilhoso de E o Vento Levou
que marcou uma das rupturas menos românticas do cinema. Talvez tudo tenha sido
bem menos dramático. Mas decidi me lembrar dessa cena exatamente assim.
Não sei dizer ao certo quanto tempo se passou. Ou se comi. Sei que bebi um
bocado. Sei que durante as primeiras várias horas, ouvi a mesma música muitas
vezes. E sei que cantei junto. Sei que o volume estava alto o suficiente para
que minha vizinha viesse bater na minha porta, acompanhada do síndico e de
duas senhorinhas curiosas. Se lembra quando a gente... chegou um dia a
acreditar... que tudo era pra sempre... sem saber... que o pra sempre,
seeeeempre acaaaabaaaa... Tenho a leve lembrança de que Dona Filomena
estava no pequeno grupo, mas como ela realmente me adora, se escondeu na
escada quando abri. É. Agora tenho certeza. Reconheci na memória dessa cena o
vestido de renda verde claro, que ela comprou em sua última viagem à Cipó dos
Anjos, e que a deixa com um ar jovial. Talvez o silêncio fosse mesmo mais
interessante. Ou menos doloroso do que esses acordes.
“Tudo dura três
dias”, dizia meu pai quando eu tinha algum problema. Qualquer tipo de
problema: nota baixa, assalto a mão armada, briga no escritório, aquela dor
visceral de quando arranquei dois dentes do siso no mesmo dia. Então, por
respeito aos seus ensinamentos, gosto de acreditar que ao terceiro dia, Alice
abriu a porta e entrou. Vi que estava acompanhada. Vi quando abriu as
cortinas. Vi que colocou as almofadas vermelhas de volta ao sofá. E, enquanto
me carregavam pelo corredor, vi que meu quadro favorito ficaria bem melhor na
sala, já que o azul turquesa da igrejinha de Amontada é apenas um tom mais
claro que as cortinas. Senti a água morna escorrendo pelos cabelos e me
lembrei de como era gostoso tomar banho de banheira na casa da minha avó! E de
como eram espetaculares os vestidos de noiva que eu fazia no meu próprio corpo
com a espuma do shampoo. E concluí, se é que se pode concluir algo enquanto
pessoas te esfregam, que a vida dos adultos é tão complicada que não acho
assim tão ruim ser um pouco infantil.
- Nada se é conquistado com
lágrimas. - Ah Alice... na minha vida, a saída nunca depende de pra onde
eu quero ir. E eu... ah como eu te invejo.
Aqueceu-me com meu roupão
de bolinhas coloridas e secou meus cabelos com toda sua delicadeza. Depois fez
uma trança, assim como fazia minha mãe quando ainda morávamos em Aprazível.
Meus cabelos, que sempre foram rebeldes nas minhas mãos, sempre obedecem
mulheres sábias. - Eu não sei pra onde ele foi.
E de repente me deu
náusea. Perdi o controle das pernas e escorreguei lentamente, como se fosse
uma folha de parreira caindo no gramado, no início do outono. As duas me
apoiaram, e me deixaram ali por um instante. Imóvel. Respirando. Sentada no
chão do banheiro. Por que será que tanta gente sempre se senta no chão do
banheiro quando precisa de um tempo? Entendo melhor os que se deitam na cama
ou no sofá macio em posição fetal. Faz todo sentido! Mas o chão do banheiro? É
frio, desconfortável, duro, sem graça. Mas muito acolhedor. E desabei
novamente.
- Vamos, não adianta nada chorar assim, disse em tom
áspero. Alice, em geral, dá conselhos muito bons. Embora raramente os siga. A
Rainha de Copas, que até então não tinha dito uma palavra sequer, pediu que
nos sentássemos à mesa da cozinha e nos ofereceu um pedaço de bolo de
chocolate. Tinha calda de brigadeiro e cobertura de doce de leite. E
sinceramente... eu não precisava de mais nada.
Carol Campos
SP
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