
16/02/2021
Ano 24 - Número 1.210

FREI BETTO ARQUIVO

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Frei Betto
CARNAVAL ESPIRITUAL
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Neste Carnaval anseio por folias interiores, de maravilhas
indescritíveis, de sinuosos alaridos, de magnificências a dispensar ruídos e
palavras. Quero toda a avenida regida por inequívoco silêncio, o baile
imponderável em gestos rituais, a euforia estampada em cada sorriso.
Rasgarei a fantasia de minhas pretensões e, despido de hipocrisias, deixarei
meu eu mais solidário desfilar alegre pelas recônditas passarelas de minha
alma.
Fecharei os ouvidos à estridência dos apitos e, mente alerta,
escutarei o ressoar melódico do mais íntimo de mim mesmo. Deixarei cair as
máscaras do ego e, nas alamedas da transparência, farei desfilar, soberba, a
penúria de minha condição humana.
Não me deixarei arrastar pelo bloco
da concupiscência. Inebriado pelo ritmo agônico da cuíca, serei o mais
iconoclasta dos discípulos de Momo, recolhido ao vazio de minha própria
imaginação.
Neste Carnaval serei figurante na escola da irreverência
até cessar a bateria que faz dançar os fantasmas que me povoam. Envolto na
desfantasia do real, perseguirei os voos das serpentinas para que impregnem de
colorido as diatribes de meu ceticismo.
No estertor da madrugada, farei
ébrias confidências à Colombina e, Arlequim apaixonado, ofertarei as pétalas
que me recobrem o coração. Não porei olhos no desfile da insensatez, nem
abrirei alas à luxúria do moralismo.
Esperarei baixar a sofreguidão
que me assalta, buscarei a euforia do espírito no avesso de todas as minhas
crenças, exibirei em carros alegóricos as íngremes ladeiras da montanha dos
sete patamares.
Darei vivas à vida severina, riscarei Pasárgada de meu
mapa e, ainda que não me chame Raimundo, farei da rima solução de tantos
impasses nesse devasso mundo. Expulsarei de meu camarote todos os incrédulos
do Pai Nosso cegos aos direitos do pão deles.
Revestido de inconclusas
alegorias, sairei no cordão das premonições equivocadas e, vestido de Pierrô,
aguardarei sentado na esquina que a noite se dissolva em epifânica aurora.
Ao passar o corso da incompletude, abrirei as gaiolas da compaixão para
ver o céu coberto pela revoada de anjos. Trocarei as marchinhas por aleluias e
encharcarei de perfume os monges voláteis incrustados em minhas imprudências.
Olhos fixos no esplendor das batucadas siderais, contemplarei o desfile
fulgurante dos astros na Via Láctea. Verei o sol, mestre-sala, inflamar-se
rubro à dança elíptica da cabrocha Terra. Se Deus der as caras, festejarei a
beatífica apoteose.
Evocarei os orixás de todas as crenças para que a
paz se irradie sobeja. Puxarei o canto devocional de quem faz da vida a arte
de semear estrelas.
Entoado o alusivo, darei o grito da paz. No reverso
do verso, cunharei promissoras notícias e, no quesito harmonia, farei a víbora
e o cordeiro beberem da mesma fonte.
Meu enredo terá a simplicidade de
um haicai, a imponência de um poema épico, a beleza das histórias recontadas
às crianças. De adereços, o mínimo: a felicidade de quem pisa os astros
distraído.
Farei da nudez a mais pura revelação de todas as virtudes;
assim, ninguém terá vergonha de mostrar o que Deus não teve de criar, e a
culpa será redimida pelo amor infindo.
Neste Carnaval não haverei
de me embriagar de etílicos prazeres. Me submeterei às libações subjetivas,
ofertarei ao Mistério cálices de clarividências e iluminuras gravadas em
hóstias.
Enclausurado na comunhão trinitária, ingressarei na festa que
se faz de fé e na qual toda esperança extravasa no amor que não conhece dor.
Então a palavra se fará verbo, o verbo, carne, e a carne será transubstanciada
em festival perene – Carnaval.
Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um
frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca”
(José Olympio), entre outros livros. twitter:@freibetto
http://www.freibetto.org/
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