
07/03/2009
Ano 12 -
Número 622

Arquivo
Jacqueline Bulos
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Jacqueline Bulos Aisenman
DESALENTOS
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Passou das seis e claro, a noite já apontou faz tempo. Frio está
daqueles de gelar ossinhos agasalhados por camadas de gordura, pele e
muita roupa. Ainda há pouco olhei o termômetro e o louco teve a ousadia de
me mostrar menos cinco. Duvidei e fui olhar outro que não só me confirmou
mas ainda ficou oscilando pra baixo. Nestes instantes a gente dá beijinho
até nas paredes de tão contente de ter casa e todos os etecéteras...
Não posso, sinceramente, imaginar os que a sociedade chama de forma quase
tão comum de "SDF", os sem domicílio fixo, o seja, aqueles que o sistema,
por um motivo ou outro recebeu de braços abertos porque a vida, ela mesma,
já os tinha fechado.
Há pessoas de todas as idades e não pensem os incautos que são tão somente
malandros e drogados "porque querem" que estão aí a vagar nas ruas "da
amargura". No fundo, quem quer? Talvez uma meia dúzia, como dizia um amigo
meu, de quatro ou cinco, que aprecia a liberdade um pouco além da conta (e
por conta de alguma enfermidade...). Mas a verdade é que há crianças lá
fora. Jovens adolescentes, jovens adultos, adultos bem constituídos (e
desconstituídos), adultos já mais maduros, idosos; homens e mulheres.
Estão todos lá fora entre pássaros, cães, gatos e ratos. Mas pássaros voam
e se abrigam. Ratos sabem perfeitamente onde devem ir. Gatos, fogem e
abrigam-se. Os homens e as mulheres e as crianças, assim como os cães,
aninham-se uns aos outros ou estendem um olhar ou uma mão num pedido mudo
de ajuda ou deixam-se morrer. Estes últimos, no máximo de um frio, de dor,
de fome, mostram os dentes que sobram e ameaçam. E isto logo antes do fim.
Sofro.
Tento pensar em outras coisas, olho mais além e imagens mostram cenas que
poderiam ser de festa. Fogos de artifício? Brincadeiras? Não... Olho
melhor e mais longamente. Observo o caminhar duro e febril das gentes que
entram em guerra na data de mais desejosa paz e entristeço com a certeza
de que para o nosso próximo em breve nada mais restará. Caem corpos que há
poucos minutos eram pessoas que festejavam. O rosto de uma mulher se
encharca, seus olhos expulsando todas as lágrimas do coração, enquanto
homens impedem-na de correr. Gritos. Muitos gritos. Agora que sei que o
barulho não me lembra mais as festas de criança eu também quero chorar.
Ai, que a dor é grande quando ela vem assim, provocada pela mão perniciosa
do ser que sabia que não havia porquê! Agora, quem tinha lar, em segundos
não terá mais. Quem vivia sob um teto, agora viverá sob a mira da arma de
alguém. Se o ser humano é capaz de atos dessa natureza, nem há o que
imaginar. E como somos nós o próximo de alguém, o que restará para nós
também ?
Volto, o pensamento volta. Nas ruas que o inverno castiga, cai neve. Num
outro hemisfério, como não querendo saber quem tem ou não seu lugar dentro
ou fora, quem se abriga, quem dá abrigo, quem necessita... quem é
necessitado... lá a chuva é o castigo. E o desamparo amplia suas asas e
sob elas abriga tantos quanto pode. Desabrigados de ontem, de hoje ou
amanhã. E o pensamento percorre o tempo e as áreas não desejando, não
querendo, fazendo do olhar uma oração em prol do cessamento de tantas
intempéries.
Que o tempo tenha piedade dos infortúnios que abraçam a existência de
milhares de pessoas perdidas pelas ruas do planeta. Que o universo tenha
misericórdia das desgraças que se abatem sobre tantos que sofrem e que
sabemos, tem tanto de bom a receber. Mas principalmente, que os homens
tenham consciência e humildade e cessem de causar tanto mal aos seus
semelhantes e a si próprio.
Um pouco de calor faz tão bem!
(O silêncio me ampara)
(07 de março/2009)
CooJornal
no 622
Jacqueline Bulos Aisenman é autora do livro “CORACIONAL – COISAS QUE
VEM DE DENTRO” .
A escritora nasceu em Laguna/SC e há mais de uma década reside em
Genebra.
Mantém o blog http://certaslinhastortass.blogspot.com/
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