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Os Natais de Valdevina
Airo Zamoner

Valdevina examinava seu reflexo, acertando detalhes na indumentária especial.
Sentia falta do grande espelho de outras eras. Nele se via inteira. Mas hoje era
preciso examinar um detalhe por vez. “Não faz mal!” Repetia, soltando um sorriso
de satisfação infantil, costumeiro paradoxo na tecitura envelhentada de um rosto
a camuflar belezas antigas.
Suas mãos delicadas de outrora aconchegavam, na árvore fingida, enfeites
colhidos a esmo.
As cores desconexas não traziam aborrecimentos como antes.
O burburinhar da rua não abafava o sussurro de sua voz desafinada, fingindo
corais natalinos. Ao seu lado, a janela ainda escura. Era cedo.
Aos poucos, o clima desejado se formava em torno de Valdevina.
Ajeitou delicadamente as dobras e rodopiou adolescente, criando a alegria do
vestido rodado a se expandir.
A música saía de seus lábios vermelhos, preenchendo os ares.
A árvore estava pronta. As velas crepitavam festivas. Pena que desta vez eram
apenas duas, mas completavam o esperado cenário. Tinha saudade das luzes
coloridas, piscantes.
Sentou-se com delicadeza frágil. Entrelaçou a pernas, ajeitando a saia. Apoiou
seu queixo. Sentiu os olhos brilhantes. Em minutos o ambiente seria invadido
pelos gritos de sempre, expondo desejos renovados. Faltariam faces para tantos
beijos. A criançada escalaria por suas vestes e o chão se empanturraria de
presentes. Os cheiros invadiriam a sala e o tilintar das porcelanas e pratas
cobririam os acordes.
O sonho de Valdevina ia recriando com esmero artesanal as cenas que irromperiam
em breve no lugar. Ela antegozava a felicidade iminente.
Tudo pronto!
Silenciou por um átimo. Só por um átimo. Apurou os ouvidos. Talvez as vozes
estariam no portão. Não! Ainda não!
Tudo pronto!
Levantou-se, avistando o relógio da igreja. Já era o momento. Não. A hora
ultrapassava o momento. A vidraça continuava apagada. Afastou os maus
pensamentos e voltou a cantarolar feliz.
Repassou os detalhes, os enfeites, o vestido. Sentou-se novamente, agora voltada
para a torre distante. Contava o tempo, solfejando a cantiga.
Reclinou-se junto à parede. O primeiro bocejar foi inevitável. O rumorejar da
rua amainava.
Súbito uma luz difusa iluminou os enfeites. A janela incendiou-se iluminada.
Gritos tiraram-na do cochilo curto. Valdevina ameaçou contentamento. A canção se
transformou em sirene irritante. As luzes coloridas piscavam na viatura.
Valdevina foi arrastada.
– Outra vez, Valdevina! Essa maluca tá pensando que todo dia é natal!
airo@protexto.com.br
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