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Certa Noite de Natal
Milton Ximenes Lima
Pacata cidade interiorana, lá pelos lados do Espírito Santo, em tempos de mil
novecentos e quarenta oito. Na velha casa de dois quartos, sala, cozinha,
banheiro lá fora, se espremiam e se desviavam marido, esposa e três filhos: um
menino e duas meninas, todos em início de idade escolar.
Ali, o Natal começava a se anunciar no mês de agosto, quando a mãe, mais
instruída, começava a colecionar, até novembro, as edições da revista infantil
“Tico-Tico”, para retirar, depois, as páginas centrais onde estavam impressas as
coloridas figuras que, aos poucos, recortadas e coladas a um grosso papelão, iam
formando, mês a mês, o futuro e ansiado presépio.
Semanas antes da data, no refúgio das horas tardias das noites, para que as
filhas não a vissem, a mãe, pedalando a máquina de costura, reformava e
enfeitava as mesmas bonecas presenteadas no ano anterior. Ao filho, uma nova
calça curta, uma camisa ou um boné. Improvisava-se uma árvore natalina com
galhos dos arbustos do quintal, debaixo dela descansavam os “misteriosos”
presentes. Vez em quando padrinhos se lembravam dos afilhados, remetiam
novidades. Foi assim que o menino ganhou a primeira bola, e as meninas uns
brinquedos de jogar e uns sapatinhos. E todos ficavam felizes, mesmo com os
companheiros de brincadeira exibindo coisas mais interessantes, curiosas
novidades. Apesar de muito desejarem, jamais pegavam o Papai Noel, o velhinho,
apesar de velhinho, devia ser esperto, vinha sempre muito cedo, lá pela
madrugada, estavam todos dormindo.
O pai, ferroviário, não era presença constante no lar, era escravo das escalas
de trabalho que, muitas vezes, o afastavam para outros Estados.
Naquele ano, veio segredar à mulher:
- Vamos preparar as crianças para uma coisa meio chata. Não vou poder estar aqui
no Natal...
Explicou:
- Coisas lá no Sindicato... Discuti com o grupo do meu chefe. Perdi o controle,
disse umas verdades que mereciam ouvir... Agora, veio esta vingança, ele me
escalou para uma viagem longa, lá pelo ramal de Carangola, e começando bem no
dia 23!
Ela lhe relembrou frase muito repetida:
- João, João, você tem que controlar esse seu pavio curto!
- Entenda, mulher, um dia isso vira, fico por cima, e chega minha vez... -
justificou.
No Natal, a mulher amuada e silenciosa. Entretanto, percebia a alegria das
crianças, e era só isto que anestesiava a tristeza do seu coração de mãe e
esposa.
Muitos anos depois, o adolescente filho, num baile do colégio, veio a saber que
naquele ano, na verdade, o pai passara as festas natalinas com uma outra mulher.
E isto confessado por sua própria e então desconhecida irmã, ao tentar
inocentemente namorá-la, e ela, filha daquela outra mulher, já sabendo quem ele
era, se encarregou de esclarecê-lo.
Acolheu o segredo. Assimilou-o entre silenciosas angústias. E a já admirada
imagem da mãe cresceu mais ainda em meio aos seus jovens e controversos
sentimentos.
miltonxili@yahoo.com.br
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