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Presente Inesperado
Sonia Alcalde
Faz muito tempo. Família grande, oito irmãos. A mãe era lavadeira, o pai
trocador em bonde. Ele usava uniforme azul marinho com galões dourados finos que
se somavam a cada ano de serviço. Chegava orgulhoso em casa contando os elogios
ao apresentar o relatório dos acidentes. Não sabiam que era Josefa que, desde os
doze anos, escrevia para o pai. Ele mal assinava o nome.
No colégio, sua redação sobre Villa-Lobos fora premiada. Leu-a diante do próprio
maestro. Depois, o aperto de mão e as palavras elogiosas por aquele homem
admirável que a escola tinha se engalanado para recebê-lo. Josefa quis dizer em
casa o que lhe acontecera, colorindo a cena com as emoções que se prolongavam.
Prestaram atenção por alguns momentos, mas logo os irmãos desviaram o assunto
para os preparativos do Natal entrecortado por “não pega o meu pão”, “eu quero
mais feijão”, “a carne tá muito dura”, “não agüento mais comer quibebe”.
Josefa era a mais velha. Ouvia os irmãos menores com sonhos de ter uma árvore de
Natal pronta. Como não dava para comprar, cortavam um galho da goiabeira que era
enfeitado com bixiguinhas coloridas e papel crepom. Mesmo assim, faziam
algazarra. A mãe os ajudava a manter a alegria pela data.
Muitas vezes Josefa deixava a mesa para atender ao pai. Gostava de lavar os pés
antes de dormir e pedia à filha “faz esse favor pra mim?”. Josefa não se
incomodava. Colocava uma bacia de alumínio com água morna e esfregava os pés
devagar. Fazia um efeito enorme. Ele começava a falar do trabalho, das situações
vividas, de um chapéu de mulher que tinha voado que mais parecia um ninho de
passarinho, do guri que saltara com o bonde andando e rasgara a calça ao cair...
De repente, o pai bocejava e dava um basta no lava-pés demorado:
— Agora chega, tenho que dormir porque amanhã é outro dia, preciso acordar cedo.
Obediente, Josefa concluía a tarefa. Saía de fininho, afastando-se de todos para
escrever no diário.
Chegou a noite de Natal. Não contavam com presentes; somente sacos de balas e um
carrinho para o caçula de dois anos. Comida: um porco engordado para a ocasião.
Feito de diversas maneiras, entre as quais as famosas morcelas da dona Tereza.
Quando a ceia terminou, Josefa foi ao banheiro, construído fora da casa.
Aproveitou para admirar a lua. Estava exuberante em sua forma redonda. Antes de
entrar, a última espiada. Colocou a roupa de dormir e foi para seu canto sonhar.
Pela manhã, ao acordar, viu a mãe e os irmãos sorrindo ao seu lado; junto, o pai
carregando um embrulho:
— Não é nova, é pequena. Foi o chefe quem me deu para modernizar os relatórios —
disse o pai entregando-lhe o pacote.
Josefa recebeu a caixa. Pesada. Começou a abrir. Ao perceber letras brancas
gravadas em teclas pretas, chorou agarrando-se ao presente inesperado. Os pais e
irmãos abraçaram-na rindo.
alcalde@alternet.com.br
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